quinta-feira, 26 de julho de 2018

Por que ler Philip K. Dick?


Philip K. Dick foi um escritor americano de ficção científica, nascido em 1928. Suas histórias, inconvencionais até mesmo para o gênero, focavam sempre em realidades distorcidas. Foi muito influenciado por Aldous Huxley, suas próprias experiências com drogas, estudos sobre Psicologia e, principalmente, por sua crença de que não vivemos em um mundo real, mas em uma realidade simulada por computador, ou seja, uma matrix. A quantidade de adaptações para cinema e TV de seus livros e contos é espantosa, só para citar algumas: Minority Report, O Vingador do Futuro, O Homem Duplo, O Homem do Castelo Alto e, claro, Blade Runner.

Na juventude, Philip foi submetido a um teste psicométrico e o resultado surpreendeu: suas respostas em conjunto não seguiam absolutamente nenhum padrão. Era como se a sua personalidade fosse raríssima ou até mesmo exclusiva. Com esse perfil único, sua sanidade mental era discutível, e sua inteligência e criatividade inegáveis. Em vida, foi premiado algumas vezes, mas sua genialidade levaria tempo para ter o devido reconhecimento. Blade Runner chegou ao cinema em 1982, ano de sua morte, e desde então até os dias de hoje, produtores fazem fila para adaptar suas histórias.

Não espere maniqueísmo em seus livros: bem e mal não são claramente definidos e seus protagonistas não são heróis. Espere mais perguntas do que respostas, a maioria delas começando com "E se... ?". E se você não soubesse se está vivo ou morto? Se é uma pessoa ou um andróide? E se pudesse implantar memórias falsas? E se tivesse uma vida dupla? E se sobrevivesse num mundo psicótico a base de alucinógenos? E se acordasse um dia e ninguém lembrasse quem você é? Como seria o mundo se a Alemanha e o Japão tivessem vencido a Segunda Guerra? Espere histórias ágeis, caóticas e bem construídas no futuro (o nosso presente) como ele imaginava que seria.

O professor de ciências políticas Henry Farrell foi categórico: "Não é no futuro de George Orwell ou Aldous Huxley em que estamos vivendo. Não estamos aprendendo a amar o Big Brother ou tomando o soma para preservar as hierarquias sociais. É no mundo de Philip K. Dick: o das pseudo-realidades. As pessoas hoje não são melhores em detectar inteligências artificiais do que seus personagens. No twitter muitos interagem com bots, inclusive o presidente dos Estados Unidos retuitou uma mensagem elogiosa de um bot conectado a uma outra rede de bots. Essa falsidade generalizada, combinada com política fragmentada e fake news, pode ser explosiva".

Coincidentemente (ou não), houve sincronias entre seus livros e os momentos da minha vida enquanto eu lia pelo menos quatro vezes, com Fluam, Minhas lágrimas, Disse o Policial; Um Reflexo na Escuridão (ou O Homem Duplo); Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (esse aliás era um dos livros preferidos do John Lennon) e Clãs da Lua Alfa.  No Brasil, a maioria dos livros disponíveis de Philip foram lançados pela Editora Aleph. E essa é a minha coleção. <3


Nós estamos vivos e Philip está morto? Ou seria o contrário?

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Like a Prayer: uma afronta ao catolicismo ou ao racismo americano?


Like a Prayer (Video, 1989): a personagem de Madonna no clipe testemunha um grupo de homens brancos atacando uma jovem branca e fugindo quando a polícia chega. Um homem negro passando pela rua decide ajudar a vítima e acaba sendo preso por engano.

Há uma troca de olhares entre Madonna e um dos bandidos, que simboliza uma ameaça mas também estabelece cumplicidade: alguém comete um crime, alguém silencia sobre ele. Eis o panorama: homens brancos estupram e matam mulheres/ homens brancos culpam os negros; ao andaram à noite pelas ruas, mulheres são mortas ou estupradas/ homens negros são colocados na cadeia.


Madonna corre assustada, entra em uma igreja e beija a estátua de um santo negro, que se materializa em um homem real. Em carne e osso, o primeiro beijo entre eles é fraternal (na testa), o segundo é erótico (na boca), não por algo excepcional na narrativa que o justifique, mas para representar a união entre negros e brancos; sexo e religião. Não por acaso, os primeiros a se incomodarem com o vídeo foram os conservadores religiosos.


Madonna não alcança a redenção sozinha, mas assistida por uma divindade: uma mulher negra que a resgata enquanto cai do céu em um sonho (num dos poucos momentos do vídeo que foge das cores predominantes preta e vermelha) e pelo seu coral de igreja formado por cantores negros. Ao tocar em uma faca, recebe os estigmas nas palmas das mãos, representando que foi "tocada por Deus".


A cena das cruzes em chamas é o clímax e a mais longa, durando 30 segundos, além de ambivalente: ao dançar com um vestido decotado em frente a elas, quem está triunfando e quem está sendo renegado: Madonna ou as cruzes? A cruz, o crucifixo, a cruz em chamas da Ku Klux Klan e o calvário dos afro-americanos são também lembretes de quem eram os alvos do projeto nacionalista conduzido na América racista.

Ao despertar do delírio catártico no banco da Igreja, o santo retorna ao altar na forma de estátua e Madonna vai a polícia testemunhar e libertar o homem preso injustamente. A cortina vermelha desce e sobe, o elenco aparece, faz uma saudação, dança e festeja. "The End" surge na tela no estilo dos filmes clássicos de Hollywood,

Videos musicais na época eram considerados ferramentas do pós-modernismo por suas características: imagens cheias de cores, movimentos rápidos, justaposição de idéias provocativas revelando ambiguidades e por vezes recusa em tomar partido. Conduto, pelas questões evocadas o vídeo de Like a Prayer é considerado politicamente progressivo, de modo que foi e ainda é estudado e debatido academicamente.


Texto baseado em artigos do livro "Madonna Companion: Two Decades of Commentary" (1999), que analisam o impacto cultural da obra de Madonna nos anos 80 e 90.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Continuações não-oficiais de Blade Runner em livros (Parte 2)


Lançado em 2011 e escrito pela autora espanhola Rosa Montero, "Lágrimas na Chuva" não é uma sequência, embora a inspiração seja óbvia até mesmo no título do livro. A história se passa em 2109 - quase 100 anos após os eventos de Blade Runner - e muitos elementos da história original foram mantidos: o cyberpunk, a marginalidade em contraste com a tecnologia avançada, as colônias extraplanetárias (com direito a Guerra Fria) e os replicantes ou andróides (os dois termos são utilizados).

Co-habitando a Terra civilizadamente e não mais na condição de escravos, surge uma onda de assassinatos e suicídios entre os replicantes causada por drogas ilegais capazes de alterar suas memórias falsas implantadas (isso mesmo, elas continuam fazendo parte deles) promovendo alucinações. Cabe à replicante e detetive Bruna Husky investigar a história, que envolve conspirações, grupos supremacistas e líderes paranoicos, mostrando que a convivência entre humanos e andróides seria menos pacífica e aceita na realidade do que nas aparências.

A caixa de empatia de "Andróides Sonham Com Ovelhas Elétricas?" não é mencionada, mas há uma outra caixa: a psicomáquina individual que fornece diagnóstico e medicação. Não há tantas referências à valorização dos animais e nem mesmo ao Teste Voight-Kampff, já que os replicantes não são mais fugitivos. O tempo de vida dos andróides continua limitado: 10 anos. Bruna sabe que tem somente cerca de 4 anos pela frente e vive em uma contagem regressiva obsessiva ao mesmo tempo em que deseja viver e entender por que suas lembranças do que não viveu são tão intensas: alguém teria vivido aquilo?

Sobre a leitura, gostei e recomendo. Foi um dos melhores livros que descobri por acaso em 2018.