segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

O Submundo em "Taxi Driver" e "Scarface"

(Aviso de antemão pra quem não viu os filmes: o texto está cheio de spoilers!)

Segundo consta, o diretor de cinema Martin Scorsese cresceu em Nova York, no bairro Little Italy, famoso pelo crime organizado e pela máfia. Como era asmático, passou a maior parte da infância dentro de casa, protegido desse submundo, mas não indiferente a ele. Tanto que em 73, dirigiu o filme "Caminhos Perigosos" sobre a amizade entre Johnny Boy, um marginal com dívidas de jogo e Charlie, um mafioso em ascensão carregado de culpa católica e, em 76, "Taxi Driver" sobre Travis Bickle, um motorista de táxi que se envolve diretamente com a marginalidade e a prostituição das ruas de Nova York.

Achei válido assistir "Caminhos Perigosos" por ser uma espécie de rascunho do que viria a ser a parceria de Scorsese e Robert De Niro três anos depois em "Taxi Driver", mas não gostei tanto assim. A pouca empatia que eu senti pelos dois protagonistas foi totalmente anulada na cena em que eles deixam Teresa (irmã de Johnny e namorada de Charlie) para trás após um ataque de epilepsia da personagem.

Travis (De Niro), de "Taxi Driver", tem um destempero emocional fascinante desde o início. A insônia crônica o leva a trabalhar como taxista no turno da madrugada. Se interessa por Betsy, mas seu senso de realidade é tão absurdo que a leva em um cinema pornô no primeiro encontro. A rejeição de Betsy e o contato com Iris (Jodie Foster), uma prostituta de 12 anos em fuga o perturbam a ponto de fazê-lo raspar a cabeça, malhar freneticamente e planejar o assassinato do Senador Palantine, para quem Betsy trabalha. A cena em que Travis visivelmente descompensado diz ao espelho "Está falando comigo?" é considerada um dos melhores improvisos da história do cinema.
Ao mesmo tempo em que planeja o atentado mal sucedido, Travis se mostra obcecado em ajudar Iris a sair da prostituição, a ponto de se meter em um tiroteio com o cafetão dela e seus comparsas em que acaba baleado também. Em recuperação no hospital, recebe uma carta de gratidão dos pais de Iris e é mitificado pela imprensa como herói e cidadão modelo, o que é irônico, levando em conta que a visão das pessoas sobre ele seria totalmente diferente se tivesse conseguido matar o Senador momentos antes do resgate de Iris.

Em "Scarface" (1983) de Brian de Palma, Tony Montana (Al Pacino) é um refugiado cubano que chega a Miami e aos poucos se torna o líder do tráfico de drogas, sem medir esforços para atingir suas ambições. Passa boa parte do filme tentando conquistar Elvira, mulher do primeiro chefe, e quando consegue, vivem uma vida infeliz: ela cada vez mais viciada, ele cada vez mais encurralado pela própria vida criminosa. Tem um ciúme doentio da irmã, o que a leva a confrontá-lo sobre um possível sentimento incestuoso da parte dele.

Diferente de Travis de "Taxi Driver", Tony parece ser mais racional que emocional. Tony leva à risca todos os assassinatos à sangue frio a que se propõe a fazer, exceto um. Contratado para explodir uma bomba no carro de um jornalista, Tony desiste ao perceber que o atentado mataria também a mulher e os filhos do homem, mostrando um lado mais humano do mafioso.

Em contraste com o conteúdo violento do filme, a trilha sonora de "Scarface" é composta por sucessos da disco music. O contraponto entre o socialismo cubano e o sonho de vida americano é bem mostrado na história também. Tony já no começo se declara um anti-socialista e repele todas as suas experiências de vida no país de Fidel Castro, mas ao atingir seus ideais capitalistas (dinheiro, mansão, poder), constrói também a sua infelicidade, retratada de maneira melhor impossível na cena final que o mostra baleado em sua piscina e focaliza a estátua de um globo em que a frase "O Mundo É Seu" está escrita.

De Palma foi bastante atacado por feministas e acusado de misoginia após "Scarface", ao que ele respondeu com bom humor. Já "Taxi Driver" inspirou um esquizofrênico a tentar matar o presidente Reagan em 1981. Ambos se tornaram clássicos e influenciaram o cinema ao longo dos anos. "Drive" (2012), por exemplo, capta muita coisa dos dois filmes. A instabilidade, a impulsividade e até mesmo os dilemas morais (ou a falta de) de Travis e Tony me fizeram ter empatia pelos personagens e entender a grandeza dos roteiros. Mas se tiver que escolher entre os dois, "Taxi Drives" ainda é meu preferido.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

A Garota Silenciosa (Tess Gerritsen)


O cenário é Boston, Chinatown. Dois crimes, épocas diferentes. Uma mulher não identificada é encontrada morta em um telhado com a garganta cortada e a mão decepada. Entre suas coisas, há um GPS com o endereço da escola de artes marciais de Iris Fang, uma mulher chinesa, de meia idade, cujo marido havia morrido em um massacre em um restaurante 19 anos antes. A partir disso, cabe à detetive Jane Rizzoli desvendar a relação entre Iris e os dois crimes e uma série de mistérios que surgem a partir das investigações, como o desaparecimento de várias adolescentes na cidade.

"Tess Geritsen é leitura obrigatória em minha casa" - Stephen King. Quando li essa recomendação do mestre do suspense na capa de "A Garota Silenciosa" não pensei duas vezes e levei o livro. E, claro, não me arrependi.

Quase todo escrito em terceira pessoa, com alguns poucos capítulos em primeira pessoa (narrados por Iris), o livro possui muitos personagens, mas são a detetive Jane Rizzoli, a patologista forense Maura Isles, a mestre de lutas Iris Fang e a sua jovem assistente Bella Li, de longe, os que realmente interessam. Algumas perguntas surgem durante a leitura: Quem é a garota silenciosa do título do livro? Qual o mistério de Iris? De que lado ela está? 
Achei genial o adjetivo do título se encaixar em mais de uma personagem. Há indícios de um elemento sobrenatural na história, que é elucidado somente nas páginas finais, instigando a curiosidade do leitor até as últimas linhas. O desfecho da história lembra um pouco o de "A Estrada da Noite", de Joe Hill (aliás, filho de Stephen King), pois há um denominador comum entre os livros. 

"A Garota Silenciosa" é daqueles livros que não se quer parar de ler quando começa. É dinâmico e, apesar do conteúdo violento, é leve e fácil de ser lido. Lembra um pouco os livros de Agatha Christie também. Soube que há uma série de TV baseada nas personagens Jane Rizzoli e Maura Isles, o que me deixou curioso, pois no livro elas têm muitos atritos apesar da idoneidade e ética profissional de ambas. Quanto ao livro, pra quem gosta de suspense de qualidade, é altamente recomendado!

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O Cinema e a Vida Após a Morte

O sobrenatural está presente no mundo do cinema há muitos anos. Filmes como "Drácula", "Frankestein" e "Zumbi Branco" com vampiros e mortos-vivos eram comuns nos anos 30 por servirem de metáfora para os capitalistas de Wall Street após a crise de 1929, mas foi na década de 40 que filmes dramáticos sobre a vida após a morte e a passagem entre os mundos ganharam força.

"Um Passo Além da Vida" (1944) foi um dos primeiros do gênero. Em um navio bombardeado na Segunda Guerra Mundial, os personagens mortos estão em uma espécie de purgatório em que um juiz designa o destino final de cada um. Em uma das cenas mais emocionantes, Prior (personagem de John Garfield), um homem anti-ético prestes a ser condenado ao inferno é salvo pela intervenção de uma senhora que se responsabiliza em olhar pelos seus atos. Prior não sabe, mas trata-se da mãe que o abandonou na infância. Para ela, a concepção de paraíso é estar perto do filho no "outro lado".

O boom de filmes semelhantes na época foi indicativo do senso inato de muitos de que a morte não é o fim, mas também uma forma de confortar as pessoas que perderam seus entes queridos na Segunda Guerra. Nas décadas seguintes, a temática perdeu força. Para rivalizar com a TV, o cinema apostou em sexo, violência e efeitos especiais para atrair as massas. Entretanto, no fim dos anos 70 a popularização do budismo tibetano e do psicodelismo instigou as pessoas sobre perda de consciência, alucinações, coma e experiências fora do corpo, trazendo de volta o interesse em roteiros sobre a vida após a morte.

Em "Ressurreição" (1980), após um acidente de carro, a personagem Edna fica na passagem entre os mundos até o retorno dos seus batimentos cardíacos. A intensa luminosidade das imagens na cena remete a um estado óptico provocado pelo uso de heroína. Recuperada, Edna descobre o poder de curar espiritualmente doenças de outras pessoas, sendo rotulada ao mesmo tempo de abençoada e demoníaca. Outro elemento forte presente é a serpente de duas cabeças que aparece em alguns momentos do filme e na Mitologia Grega significa "seguir em duas direções".


Em "Poltergeist" (1982), Carol Ann, a caçula de 5 anos de uma família de 5 pessoas, é sugada por espíritos para dentro do armário enquanto fenômenos paranormais acontecem na casa, sendo a televisão o único meio de contato entre a menina e a família.
Tanto em "Ressurreição" quanto em "Poltergeist", as personagens enxergam uma luz, uma referência à Luz Clara do Vazio citada no Livro Tibetano dos Mortos, e atravessá-la pode significar deixar totalmente o plano terreno.


"Um Passo Além da Vida", "Postergeist" e o mais recente "Os Outros" (2001) possuem como elemento em comum a existência de locais específicos para a permanência dos mortos. Esses lugares se tornam também personagens e funcionam como purgatórios ou refúgios onde só a libertação do sofrimento levaria as almas à ascensão.  

Em "Ghost" (1990) e "Um Olhar do Paraíso" (2009), os protagonistas Sam e Susie, respectivamente, após serem assassinados são incapazes de concluir o processo da morte por estarem presos ao plano físico por apego, ressentimento e sede de justiça. Como poltergeists, eles conseguem interferir no plano material, movendo objetos e sendo ouvidos por sensitivos, porém a motivação nesse caso é a tentativa de proteger as pessoas próximas de seus assassinos à solta. Uma vez cumpridas suas obrigações cármicas, em paz, os espíritos transcendem.

Nesses anos todos, o que o cinema fez foi tentar traduzir a busca pela compreensão do significado e propósito da morte, e independente das convicções pessoais dos espectadores, ótimos roteiros foram e serão gerados nessa perspectiva.