quinta-feira, 26 de março de 2015

"O Iluminado": O Livro de Stephen King e o Filme de Stanley Kubrick


Os elementos em comum entre o livro e o filme "O Iluminado"
Jack Torrance é um escritor e ex-professor contratado como zelador durante o inverno no Hotel Overlook nas montanhas do Colorado. Devido à localização e às nevascas, o lugar se torna isolado e inacessível nessa época. Sua esposa Wendy e seu filho de 5 anos, Danny, o acompanham no novo emprego. Jack é um alcoólatra em recuperação que parou de beber após quebrar acidentalmente o braço do filho e perder seu emprego como professor. Desde então, Wendy é uma mulher insatisfeita e ressentida com o marido. 
Danny é capaz de ler pensamentos e prever o futuro, coisas que seu "amigo imaginário" Tony conta através de sonhos e transes. Antes da mudança, Danny prevê que o hotel representa perigo para sua família e é acalmado pelo cozinheiro do Overlook, Dick Hallorann, um homem negro de meia idade que está de partida do hotel. Dick também é telepata e explica que as habilidades psíquicas de ambos são "iluminações" e as coisas que Danny está para ver são como "figuras de um livro, não podem machucar". Entretanto, Dick enfatiza que Danny deve manter distância do quarto 217 (237 no filme).
Danny desobedece a recomendação, entra no quarto e é atacado pela mulher morta que estava na banheira da suíte enquanto Jack começa a ser possuído pelas forças malignas do Hotel, passando a visualizar e interagir com fantasmas, inclusive o do zelador anterior, Grady, que havia assassinado a família e depois se suicidado, e recomenda que Jack faça o mesmo, levando Wendy e Danny a uma fuga desesperada com a ajuda de Dick.

As particularidades que complementam e diferenciam o filme e o livro
Há um background sobre Jack no livro que não é mostrado no filme. Jack cresceu em uma família disfuncional, com um pai abusivo e violento com os filhos e a mulher. Apesar do alcoolismo e de alguns episódios de rompantes raivosos, Jack é um homem, de certa forma, sob controle e consciente, tanto que para de beber por conta própria por amor ao filho, com quem possui uma ligação afetiva mais forte do que aparece no filme, que também passa a impressão de que Jack é demente desde sempre.

É dito no filme que a construção do Hotel Overlook se fez em cima de um cemitério indígena no começo do século - considerada uma metáfora de Kubrick sobre o genocídio dos nativos americanos - o que seria a origem (ou uma delas) das forças ocultas que predominam sobre o local.  De acordo com o livro, a malignidade deriva dos assassinatos e suicídios ocorridos no decorrer das décadas em que o Hotel foi comandado por uma sucessão de mafiosos e o destempero de Jack se acentua ao encontrar no porão papéis e recortes de jornais sobre tais acontecimentos.

As visões de Danny no livro são confusas. Ele é avisado por Tony sobre o "redrum" (murder, ou seja, assassinato lido de trás pra frente) e os recursos audiovisuais usados no filme (o banho de sangue no corredor e a visão das gêmeas assassinadas - que não faz parte do livro) são excelentes representações delas. A comunicação telepática entre Danny e Dick ao se conhecerem e mais tarde, no momento em que Danny pede socorro a Dick, é bem retratada com o ruído desconcertante e as trocas de olhares entre os personagens em cena. O Danny do livro é mais comunicativo, eloquente e confortável com suas habilidades psíquicas do que o do filme.

Wendy no filme é excessivamente abatida (o que talvez seja reflexo do stress pelo qual passou a atriz Shelley Duvall durante as filmagens, já que ela e o diretor não se deram bem) e um pouco mais histérica do que o livro sugere. Seu contato com o conteúdo sobrenatural do hotel se dá em dois momentos no filme: ao encontrar os esqueletos no salão de festas e ao ver um homem fantasiado de urso fazendo sexo oral em outro em um dos quartos.

Mas a principal modificação de Kubrick na história de King está no final. Enquanto no livro Danny e Wendy fogem com a ajuda de Dick e Jack morre com o incêndio provocado pelo aquecimento da caldeira no hotel, no filme Dick não sobrevive. Wendy e Danny conseguem fugir e Jack morre congelado procurando por eles fora do hotel. A conclusão do filme mostra uma foto na parede de um baile ocorrido em 4 de Julho de 1921 e Jack está nela, sugerindo que Jack seria a reencarnação de alguém que esteve no hotel nos anos 20 ou que foi absorvido pelo Overlook, embora o interesse primordial do hotel de acordo com o livro estivesse na posse de Danny e não de Jack.

O fim do livro mostra Dick prestando solidariedade a Wendy e Danny, que sofre pela ausência do pai e descobrimos que Tony é, na verdade, uma projeção de Danny um pouco mais velho, já que seu nome completo é Danny Anthony Torrance.

"Quarto 237"
O documentário "Quarto 237" (2012) trata dos enigmas e mensagens subliminares do filme com base em várias teorias, sendo a mais sensacionalista a de que o filme se trata de uma confissão do diretor da sua participação na falsificação da NASA sobre a ida do homem à Lua (Danny com a camiseta com a inscrição Apollo 11 no momento em que é atraído para o quarto, o diálogo sobre contrato e responsabilidade entre Jack e Wendy, e a mudança do número do quarto de 217 para 237 - a distância da Terra à Lua é de aproximadamente 237 mil milhas - seriam pistas dessa confissão).

Stephen King X Stanley Kubrick
Sabe-se que King não gostou nada da adaptação de Kubrick para "O Iluminado", incomodado pela descaracterização dos personagens e com a escolha de Jack Nicholson para viver Jack Torrance (King preferia Jon Voight). Considerado um dos maiores clássicos do cinema, o filme nem sempre foi visto dessa forma. Quando foi lançado, recebeu muitas críticas e indicações ao Framboesa de Ouro.

Os livros mexem com a imaginação e os filmes agem diretamente nos sentidos através de recursos audiovisuais. Sendo as linguagens literária e cinematográfica tão diferentes, nem sempre a fidelidade funciona nas adaptações de livros para o cinema (por exemplo, os arbustos podados em forma de animais que aterrorizam Jack e Danny no hotel são ótimos elementos no livro, mas na adaptação para a televisão feita nos anos 90, as cenas não funcionam bem)Estamos diante de um clássico da literatura e um clássico do cinema. O livro merece ser lido e o filme merece ser visto, desde que o espectador entenda que se trata de uma adaptação livre e não literal.

quarta-feira, 18 de março de 2015

"Enigmas da Culpa" (Moacyr Scliar) e "Entre Garotos"(Pablo Torrens): Culpa, Religião e Sexualidade


Há cerca de um ano eu li "Enigmas da Culpa" de Moacyr Scliar. Lembro que enrolei pra começar por achar que era autoajuda (sim, cometi o erro de julgar pela capa, mas corrigi em tempo) e me surpreendi com um livro inteligente sobre os aspectos morais, religiosos, fisiológicos/ hormonais e até mesmo culturais da culpa, identificando-a em várias obras literárias (desde a Bíblia até obras como Lady Macbeth de Shakespeare e Crime e Castigo de Dostoievski).

O livro não é biográfico, mas Moacyr compartilha experiências da própria vida vez ou outra no texto (o que achei ótimo, pois me senti mais próximo desse autor que até então eu desconhecia). Moacyr fala da mãe, uma típica figura materna judaica - superalimentadora e superprotetora - de acordo com suas palavras, enchendo a mesa de comida quando ele era criança e dizendo: "Você não vai comer tudo? Vai desperdiçar sabendo que tanta gente no mundo passa fome?". E de repente ele se sente culpado pela fome no mundo.

Em "Enigmas da Culpa" consta que Freud considera a culpa resultante da própria civilização, sendo uma forma de reprimir a agressividade instintiva das pessoas. Estando a emoção mais relacionada a aspectos fisiológicos e o sentimento ligado a pensamentos e conceitos pré-estabelecidos, a culpa é um sentimento e o autoflagelo (que também pode ser um distúrbio) pode durar de dias a até mesmo uma vida toda. No contexto religioso, a culpa nada mais é que uma conseqüência da transgressão. 

Eis um dos protagonistas de "Entre Garotos" de Pablo Torrens: o sentimento de culpa. Nesse outro livro lido recentemente, uma ficção sobre um rapaz chamado Elder que, aos 18 anos, é convocado a ser missionário da Igreja Mórmon ao mesmo tempo em que lida com a descoberta da homossexualidade, a culpa é quase um personagem à parte.

A missão de Elder, comum aos jovens mórmons, consiste em viver por dois anos à disposição da Igreja dos Santos dos Últimos Dias nos Estados Unidos, sem contato com a família, sob rígidas regras e pregando o evangelho de porta em porta. Seu desconforto com essa decisão imposta pelos pais me faz lembrar da parábola de Jonas do Antigo Testamento. (Designado por Deus para profetizar a destruição de uma cidade de pecadores, Jonas recusa a missão e foge de barco. Em Sua infinita bondade, o Senhor manda uma tempestade, Jonas é atirado ao mar e engolido por um peixe, que o transporta à tal cidade). Metaforicamente, Elder também é de certa forma "engolido", absorvido pelos conflitos psicológicos causados por sua falta de vontade de seguir a missão, o medo de decepcionar os pais, a atração por alguém do mesmo sexo e tudo o que vem junto com isso: negação, instinto, conceitos como pecado, certo e errado, o bem e o mal colocados à prova e, claro, a culpa.

Escrito em primeira pessoa, o texto é agradável, fluido e envolvente. Como se passa em Joinville, pra mim foi fácil visualizar alguns cenários do livro. Em alguns momentos a sensação é a de que Elder é um amigo contando sua história, familiar a quem passa por momentos similares. Em outros, dá pra se colocar completamente no lugar dele pela narrativa introspectiva e pela sinceridade do personagem, mesmo sendo uma obra de ficção. Um dos mecanismos do autor para que o leitor se coloque na pele de Elder é não citar em momento algum o nome da mãe (na verdade, não sei se a intenção foi essa, mas pelo menos comigo funcionou assim e eu achei genial da parte dele), fazendo com que a figura materna projetada por quem lê seja a da própria mãe, não a do personagem.

Aliás, a mãe de Elder merece destaque. Como toda boa mater dolorosa, ela tenta impedir o filho de seguir um caminho que o leve ao martírio. (Mas será que não são todas as mães assim mesmo?). E assim como a mãe superalimentadora de Moacyr, ela também contribui na construção da culpa do filho. "Você não pretende casar, ter filhos, me dar netos? Não vai me dar essa alegria?". (Poxa, Elder, você vai negar essa felicidade à própria mãe? Been there, done that). Mas como toda mãe, claro que ela não se limita a cobranças. Há amor genuíno ali.

Eu poderia esmiuçar mais sobre os personagens e a história, como já fiz em outros posts, mas não quero estragar a surpresa pra quem for ler. Finalizo dizendo que a primeira paixão, a primeira confidência a alguém sobre ela, a sensação de estar perdido, o apoio encontrado na amizade, enfim, tudo isso pelo que a gente passa quando está crescendo é descrito de maneira muito bonita nesse livro e recomendo muito a leitura de "Entre Garotos", assim como espero que novos livros sejam escritos por esse jovem escritor sensível e eloquente.